Resenha

"Anora" avança com favoritismo ao Oscar

Vencedor da Palma de Ouro em 2024, longa-metragem do nova-iorquino Sean Baker está na disputa de Melhor Filme e Melhor Atriz, com atuação destemida de Mikey Madison

TEXTO Débora Nascimento

27 de Janeiro de 2025

Os atores Mark Eydelshteyn e Mickey Madison, que interpretam Ivan e Ani Divulgação

Em 2015, o nome do diretor Sean Baker circulou no circuito cinéfilo como novo queridinho, mesmo que estivesse trabalhando na área desde 2000. Naquele ano, ele havia lançado Tangerine, filme que roteirizou e dirigiu, causando furor pelo protagonismo de figuras marginalizadas da sociedade, pelo humor nos diálogos, mas, principalmente, pelo fato de ter sido filmado com três iPhones 5s. No enredo, uma prostituta trans sai à caça de seu namorado ao descobrir que ele a traía uma mulher cis.

Dez anos depois, com Anora, vencedor da Palma de Ouro 2024 e indicado ao Oscar de Melhor Filme 2025, o diretor nova-iorquino volta a colocar uma garota de programa como protagonista de sua história. Dessa vez, uma menos debochada, mas não menos forte. Ani é dançarina de um badalado clube de strip-tease em Brighton Beach, animada região de Nova York com comunidades russas e do leste europeu. A primeira parte do filme passeia por esse ambiente noturno com uma câmera fluida comandada por Drew Daniels, diretor de fotografia de Euphoria, criando uma ambiência semelhante à da série.

O primeiro terço do filme se passa nesse local, onde Ani se relaciona com vários homens, como uma profissional do sexo, sem se aprofundar na interação com eles, até que surge um rapaz simpático, gentil, cavalheiresco, aparentemente inofensivo. É Ivan ou Vanya, um jovem esfuziante por ter atingido a maioridade e a efervescência hormonal. Ele mergulha loucamente no que há de melhor em sua vida: sexo, viagens, drogas e dinheiro.

Ivan é interpretado pelo ator russo Mark Eydelshteyn, de 23 anos, um sol quando está na tela. Apesar de ser bem-humorado, amigável e generoso com todos que conhece, o playboy e bon vivant é totalmente alucinado e inconsequente. Vai desperdiçando dinheiro por onde passa. A ligação com Ani surge quando ele, que não domina o inglês, precisa de uma stripper que dialogue em russo.

Ambos, Ani e Ivan, logo se dão bem, fisicamente e emocionalmente. O diretor Sean Baker coloca a plateia como voyeur desse ritmo acelerado de sexo, bebedeira e alegria quase pueril. Nesse momento, o filme parece uma mistura das vibes de Curtindo a vida adoidado (1986), Superbad (2007) e Uma linda mulher (1990). Há, inclusive, um diálogo semelhante ao filme protagonizado por Julia Roberts, quando Ivan negocia com Ani o pagamento para que ela seja sua acompanhante. Ela joga o valor acima. Após conseguir, revela que faria por menos, como uma prova de que gostou de Ivan.

Tudo isso dito, é quase um alongamento da sinopse que traz, já em seu resumo, spoilers, até porque a história não é muito densa e extensa. Os acontecimentos são poucos. No entanto, o que importa mesmo são as reações às situações, os sentimentos e as sensações. E, principalmente, o desfecho do filme, que o diretor revelou, em entrevistas, já saber como queria, desde antes de começar a escrever o roteiro.

Concorrente em seis categorias do Oscar, incluindo Melhor Filme, Anora é uma obra que condiz bastante com a tendência atual dos filmes híbridos, que misturam gêneros. Nas sinopses, ele é apontado como comédia e romance - mas deveria ser acrescentado “drama”. A comédia é tipo pastelão e emprega, muitas vezes, estereótipos, como retratar os russos como homens toscos.

Em meio à principal cena do filme, que demarca o começo da “segunda parte” da história, a atriz Mikey Madison, que já havia demonstrado coragem em (excessivas) cenas de nudez, na “primeira parte”, mostra o talento em cenas de brigas “de boca” e de corpo – o que ficou evidente em Era uma vez em Hollywood (2029), no confronto com o dublê Cliff (Brad Pitt). A propósito, foi essa breve participação no filme de Quentin Tarantino (e também em Pânico, de 2022) que atraiu a atenção de Sean Baker para a atriz norte-americana de 25 anos. 

A mencionada cena de briga corporal em Anora marca um ponto de virada no filme, pois um personagem totalmente secundário passa a ganhar relevância na narrativa, o capanga Igor. Para interpretar esse personagem, Sean Baker convidou o ator russo Yuriy Borisov, após ver sua atuação em Compartimento No.6, vencedor do Grande Prêmio do Festival de Cannes em 2021. 

A escolha de Borisov foi motivada pelo fato de não ser um ator acostumado com os EUA. Assim, Sean Baker conseguiu dele o que queria, a sensação natural de desencaixe do personagem. A performance de Borisov lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante – embora Mark Eydelshteyn, intérprete de Ivan, também merecesse.

Apesar de Ani lutar para ser uma stripper pragmática, que cumpre sua jornada diária, entendendo como a sociedade a enxerga, quando ela imagina ter saído da clausura da difícil sobrevivência, a verdade confronta-se com o desejo que ardia em seu íntimo. Então, Anora se apresenta como um filme sobre o tragicômico embate entre realidade e ilusão. Isso vai ficando claro quando as luzes artificiais são trocadas pela luz natural.

Enquanto o espectador vai imaginando que Anora é um novo Uma linda mulher, começa a se deparar com uma versão modernizada de Noites de Cabíria (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1958), em que Fellini já misturava, no longínquo 1957, comédia, romance e drama. Se o filme italiano tinha Giulietta Masina, que interpretou uma prostituta meiga e carente, Ani comporta-se como uma mulher realista, quase niilista.

Se a atuação magistral de Giulietta Masina rendeu prêmio de Melhor Interpretação feminina em Cannes, se Uma linda mulher transformou Julia Roberts em uma superestrela, Anora levou uma jovem atriz, com poucos filmes no currículo, a concorrer ao Oscar de Melhor Atriz de 2025. Mickey Madison é, ao lado de Demi Moore e Fernanda Torres (Karla Sofía Gascón está praticamente descartada, após polêmicas), uma das fortes apostas deste ano, por sua atuação destemida. 

Vale lembrar que ficar nua não é o bastante: Emma Stone ganhou por Pobres Criaturas, em 2024, mas Ana de Armas ficou sem estatueta em 2023 por Blonde. Mikey Madison tem grande mérito por encarnar a ousadia (e/ou exploração) de Sean Baker. Por causa da atriz, o espectador que ficar indeciso se acabou de ver uma comédia ou um drama, não terá dúvida que assistiu a uma performance arrebatadora.

Na temporada de premiações em 2025, o filme do diretor Sean Baker ganhou o Critics Choice, e os prêmios de Melhor Direção do Sindicato dos Diretores (DGA, na sigla em inglês), e de Melhor Produção pelo Sindicato dos Produtores (PGA, na sigla em inglês), conquistando favoritismo ao Oscar - 12 dos 15 últimos vencedores da categoria ganharam o PGA antes. Se vencer algumas das categorias do SAG (Screen Actors Guild Awards), prêmio do sindicato dos atores que ocorre no dia 23 de fevereiro, Anora demonstrará ter a simpatia da classe, com chances reais de conquistar a cobiçada estatueta dourada.

DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, editora-assistente das revistas Continente e Pernambuco

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